MAIS UM IMPÉRIO CHEGANDO AO FIM AMEAÇA A PAZ NO MUNDOl

Artigo escrito pelo economista Michael Hudson
O fim do domínio econômico global dos EUA sem oposição chegou mais cedo do que o esperado, graças aos mesmos neocons que deram ao mundo as guerra sujas no Iraque, na Síria e na América Latina. Assim como a Guerra no Vietnã retirou os Estados Unidos do padrão-ouro em 1971, a sua violenta campanha de guerra de mudanças de regime contra a Venezuela e a Síria – e as ameaças de sanções contra outros países se não se associarem a essa cruzada – estão levando nações europeias e outras a criarem suas próprias instituições financeiras alternativas.

Esta ruptura vem sendo construída há algum tempo e estava fadada a ocorrer. Mas quem teria pensado que Donald Trump se tornaria o seu agente catalisador? Nenhum partido de esquerda, nenhum líder socialista, anarquista ou nacionalista estrangeiro em qualquer lugar do mundo poderia ter realizado o que ele está fazendo para detonar o império americano.

O Estado Profundo está reagindo em choque ao modo como este especulador imobiliário de direita conseguiu levar outros países a defenderem-se desmantelando a ordem mundial centrada nos EUA. Para conseguir isso, está usando incendiários neoconservadores do tempo de Bush e Reagan, John Bolton e agora Elliott Abrams, para atiçarem as chamas na Venezuela. É quase como uma comédia política de humor negro. O mundo da diplomacia internacional está sendo virado do avesso. Um mundo onde já não existe a pretensão de aderir às normas internacionais, quanto mais a leis ou tratados.

Os Neocons(novos conservadores) que Trump nomeou estão conseguindo o que parecia impensável não há muito tempo: Juntar a China e a Rússia – o grande pesadelo de Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski. Estão também levando a Alemanha e outros países europeus para a órbita da Eurásia, o pesadelo “Heartland” de Halford Mackinder de um século atrás.

A raiz do problema é clara: após o incremento das falsidades e embustes sobre o Iraque, Líbia e Síria, juntamente com a nossa (dos EUA) absolvição do regime sem lei da Arábia Saudita, os líderes políticos estrangeiros estão começando a reconhecer aquilo que as sondagens de opinião à escala mundial detectaram ainda antes de os rapazes do Iraque/Irã-Contras terem voltado a atenção para as maiores reservas de petróleo do mundo na Venezuela: os EUA são agora a maior ameaça à paz no planeta.

Chamar defesa da democracia ao golpe que os EUA vêm patrocinando na Venezuela revela o duplipensar subjacente à política externa dos EUA. Define “democracia” como significando apoio à política externa dos EUA, a privatização neoliberal de infraestruturas públicas, desmantelamento da regulação governamental e seguimento da orientação das instituições globais dominadas pelos EUA, desde o FMI ao Banco Mundial e à OTAN. Durante décadas, as guerras estrangeiras daí resultantes, os programas de austeridade doméstica e as intervenções militares trouxeram mais violência, não democracia.

A ofensiva global dos EUA constitui uma enorme ameaça. Mas também está produzindo fraturas internas no sistema do capitalismo global, deslocações e rearrumações de forças. A quebra do poderio econômico dos EUA não pode ser indefinidamente compensada pelo seu colossal poderio militar.  – Michael Hudson
No Dicionário do Diabo que os diplomatas dos EUA são ensinados a usar como seu manual de redação para o duplo discurso hipócrita, um país “democrático” é aquele que segue a liderança dos EUA e abre sua economia ao investimento dos EUA, e à privatização patrocinada pelo FMI e pelo Banco Mundial. . A Ucrânia é considerada democrática, juntamente com a Arábia Saudita, Israel e outros países que atuam como protetorados financeiros e militares dos EUA e estão dispostos a tratar os inimigos dos EUA como inimigos seus.

Teria de se chegar a um ponto em que essa política colidisse com o interesse próprio de outras nações, rompendo finalmente a retórica de relações públicas do império. Outros países estão efetuando a des-dolarização e substituindo aquilo a que a diplomacia estadunidense chama de “internacionalismo” (significando o nacionalismo estadunidense imposto ao resto do mundo) pelo seu próprio interesse nacional.

Essa trajetória já podia ser vista há 50 anos (a descrevi em Super Imperialism [1972] e Global Fracture [1978].) Tinha que acontecer. Mas ninguém pensou que o fim chegaria da forma como vem acontecendo. A história converteu-se em comédia, ou pelo menos em ironia, à medida que se desdobra o seu trajeto dialético.

Nos últimos cinquenta anos os estrategistas dos EUA, o Departamento de Estado e o National Endowment for Democracy (NED) receavam que a oposição ao imperialismo financeiro dos EUA viesse de partidos de esquerda. Por isso, gastavam enormes recursos manipulando partidos que se denominavam socialistas (o Partido Trabalhista Britânico de Tony Blair, o Partido Socialista francês, o Partido Social-Democrata alemão etc.) a fim de adotarem políticas neoliberais que eram o oposto diametral do que a social-democracia significava há um século. Mas os planejadores políticos dos EUA e os organistas do Grande Wurlitzer negligenciaram a ala direita, imaginando que ela apoiaria instintivamente o gangsterismo dos EUA.

A realidade é que os partidos de direita querem ser eleitos, e um nacionalismo populista é hoje o caminho para a vitória eleitoral na Europa e em outros países, tal como o foi para Donald Trump em 2016.

A agenda de Trump pode realmente ser acabar com o Império Americano, usando a antiga retórica isolacionista do Uncle Sucker (tio Sam) de há meio século. Ele está certamente atingindo os órgãos mais vitais do Império. Mas é ele um agente antiamericano consciente? Poderia muito bem ser – mas constituiria um errado salto mental usar o “quo bono” para assumir que ele é um agente consciente.

Afinal, se nenhum empreiteiro, fornecedor, sindicato ou banco dos EUA quer negociar com ele, serão Vladimir Putin, China ou Irã mais ingênuos? Talvez o problema tivesse de irromper como resultado da dinâmica interna do globalismo patrocinado pelos EUA se tornar impossível de impor quando o resultado é austeridade financeira, ondas de populações em fuga das guerras patrocinadas pelos EUA e, acima de tudo, a recusa dos EUA em aderir às. regras e leis internacionais que ele próprio patrocinou há setenta anos, após a Segunda Guerra Mundial.

Desmantelar o direito internacional e os seus tribunais

Qualquer sistema internacional de controle requer o primado da lei. Pode ser um exercício implacável de poder, sem lei moral, que impõe a exploração predatória, mas é ainda a Lei. E precisa de tribunais para o aplicar (apoiado pelo poder de polícia para a concretizar e punir os infratores).
Esta é a primeira contradição legal na diplomacia global dos EUA: os Estados Unidos sempre resistiram a permitir que qualquer outro país tivesse voz nas políticas internas dos EUA, no processo legislativo ou na diplomacia. Isso é o que faz da América “a nação excepcional”. Mas por setenta anos os seus diplomatas fingiram que a sua arbitragem superior promove um mundo pacífico (tal como o Império Romano afirmava ser), que permitia que outros países compartilhassem prosperidade e crescentes padrões de vida.

Nas Nações Unidas, os diplomatas estadunidenses insistiram no poder de veto. No Banco Mundial e no FMI, asseguraram também que a sua participação no capital fosse suficientemente grande para lhes dar poder de veto sobre qualquer empréstimo ou outra política. Sem esse poder, os Estados Unidos não se juntariam a nenhuma organização internacional. Entretanto, ao mesmo tempo, descreviam seu nacionalismo como protetor da globalização e do internacionalismo. Foi tudo um eufemismo para aquilo que na realidade era tomada de decisão unilateral pelos EUA.

Inevitavelmente, o nacionalismo norte-americano teve que romper a miragem do internacionalismo do Mundo Único e, com ele, qualquer ideia de um tribunal internacional. Sem poder de veto sobre os juízes, os EUA nunca aceitaram a autoridade de nenhum tribunal, em particular o Tribunal Internacional das Nações Unidas em Haia. Recentemente esse tribunal realizou uma investigação sobre os crimes de guerra dos EUA no Afeganistão, desde as políticas de tortura até o bombardeamento de alvos civis como hospitais, casamentos e infraestruturas. “Essa investigação concluiu por encontrar ‘uma base razoável para acreditar que crimes de guerra e crimes contra a humanidade foram cometidos”.

O conselheiro de segurança nacional de Donald Trump, John Bolton, entrou em fúria, alertando em setembro que: “Os Estados Unidos usarão todos os meios necessários para proteger os nossos cidadãos e os dos nossos aliados de processos injustos por este tribunal ilegítimo”, acrescentando que o Tribunal Internacional da ONU não deve ser tão ousado a ponto de investigar “Israel ou outros aliados dos EUA”.

Isso levou um juiz sênior, Christoph Flügge da Alemanha, a renunciar em protesto. Na verdade, Bolton disse ao tribunal para se manter fora de quaisquer assuntos envolvendo os Estados Unidos, prometendo proibir os juízes e promotores do Tribunal de entrarem nos Estados Unidos. Bolton explicitou a ameaça dos EUA assim: “Vamos sancionar os seus fundos no sistema financeiro dos EUA, e vamos processá-los no sistema criminal dos EUA. Não vamos cooperar com o TPI. Não forneceremos assistência ao TPI. Não vamos juntar-nos ao TPI. Vamos deixar o TPI morrer sozinho. Afinal, para todos os efeitos, o TPI já está morto para nós”.

O que isso significava, o juiz alemão explicitou: “Se estes juízes alguma vez interferirem nos assunto domésticos dos EUA ou investigarem um cidadão estadunidense, [Bolton] disse que o governo americano faria todo o possível para garantir que esses juízes não teriam mais permissão para viajar para os Estados Unidos – e que talvez até fossem processados criminalmente ”.

A inspiração original do Tribunal – usar as leis de Nuremberg que foram aplicadas contra os nazistas alemães para instaurar processos similares contra qualquer país ou autoridades consideradas culpadas de cometer crimes de guerra – já havia caído em desuso com o fracasso para indiciar por crimes de guerra os autores do golpe chileno, do Irã-Contras ou da invasão do Iraque pelos EUA.

Desmantelando a hegemonia do dólar do FMI para SWIFT

De todas as esferas da política atual de poder global, as finanças internacionais e o investimento estrangeiro tornaram-se o principal ponto crítico. As reservas monetárias internacionais deveriam ser as mais sacrossantas e as obrigações da dívida internacional ser-lhes intimamente associado.

Os bancos centrais detêm há muito o seu ouro e outras reservas monetárias nos Estados Unidos e em Londres. Em 1945 isso parecia razoável, porque o Federal Reserve Bank de Nova York (em cujo porão era guardado o ouro de bancos centrais estrangeiros) era militarmente seguro, e porque o London Gold Pool era o veículo pelo qual o Tesouro dos EUA mantinha o dólar “tão bom quanto ouro ” a 35 dólares a onça. As reservas estrangeiras sobre ouro foram mantidas sob a forma de títulos do Tesouro dos EUA, para serem compradas e vendidas nos mercados de câmbio de Nova York e Londres para estabilizar as taxas de câmbio. A maioria dos empréstimos estrangeiros a governos era denominada em dólares americanos, de modo que os bancos de Wall Street eram normalmente nomeados como agentes pagadores.

Esse foi o caso do Irã sob o xá, que os Estados Unidos haviam instalado após patrocinarem o golpe de 1953 contra Mohammed Mosaddegh quando ele tentou nacionalizar a Anglo-Iranian Oil (agora British Petroleum) ou pelo menos taxá-la. Depois que o Xá foi derrubado, o regime de Khomeini pediu ao seu agente pagador, o banco Chase Manhattan, que usasse seus depósitos para pagar aos seus detentores de títulos. Sob orientação do governo dos EUA o Chase recusou-se a fazê-lo. Os tribunais dos EUA declararam então que o Irã estava em situação de inadimplência e congelaram todos os seus ativos nos Estados Unidos e em todos os outros lugares em que puderam.

Isso mostrou que a finança internacional era um braço do Departamento de Estado dos EUA e do Pentágono. Mas isso foi há uma geração, e só recentemente os países estrangeiros começaram a sentir-se desconfiados em deixar as suas posses de ouro nos Estados Unidos, onde poderiam ser confiscados à vontade para punir qualquer país que pudesse agir de maneira que a diplomacia estadunidense considerasse ofensiva. Então, no ano passado, a Alemanha teve finalmente a coragem de pedir que parte de seu ouro fosse enviado para a Alemanha. As autoridades estadunidenses fingiram sentir-se chocadas com o insulto de que poderiam fazer a um país cristão civilizado o que fizeram com o Irã, e a Alemanha concordou em desacelerar a transferência.

Mas então veio a Venezuela. Desesperada para utilizar as suas reservas de ouro para disponibilizar importações para a sua economia devastada pelas sanções americanas – uma crise que os diplomatas estadunidenses culpam o “socialismo”, não as tentativas políticas dos EUA de “fazer a economia gritar” (como disseram funcionários da administração Nixon sobre o Chile de Salvador Allende) – A Venezuela deu em dezembro de 2018 instruções ao Banco da Inglaterra para transferir alguns dos seus US $ 11 bilhões em ouro mantidos nos seus cofres e os de outros bancos centrais. Algo tão trivial como um cliente de banco contar que um banco pague um cheque que esse cliente tivesse passado.

A Inglaterra recusou-se a honrar o pedido oficial, seguindo a orientação de Bolton e do secretário de Estado dos EUA, Michael Pompeo. Assim reportou a Bloomberg: “As autoridades dos EUA estão tentando transferir os ativos da Venezuela no exterior para [o Chicago Boy Juan] Guaidó para ajudar a aumentar as suas possibilidades de efetivamente assumir o controle do governo. 
Os 1,2 bilhões de dólares em ouro representam uma grande fatia dos 8 bilhões de dólares em reservas externas mantidas pelo banco central venezuelano”.

A Turquia parecia ser um destino provável, levando Bolton e Pompeo a advertirem os turcos para deixarem de ajudar a Venezuela, ameaçando sanções contra eles ou qualquer outro país que ajudasse a Venezuela a enfrentar a sua crise econômica. Quanto ao Banco de Inglaterra e outros países europeus, o relatório da Bloomberg concluiu: “Foi ordenado às autoridades do banco central em Caracas que não entrassem mais em contato com o Banco de Inglaterra. Foi dito a esses banqueiros centrais que os funcionários do Banco da Inglaterra não iriam responder-lhes”.

Isso levou a rumores de que a Venezuela estava vendendo 20 toneladas de ouro e usando como transporte um Boeing 777 russo – cerca de 840 milhões de dólares. O dinheiro teria provavelmente sido usado para pagar detentores de títulos russos e chineses, além de comprar alimentos para aliviar a fome local A Rússia negou este relatório, mas a Reuters confirmou que a Venezuela vendeu  de um total de 29 toneladas de ouro previsto aos Emiratos Árabes Unidos , com outras 15 toneladas a serem enviadas na sexta-feira, O senador “batista-cubano” de extrema-direita Rubio acusou isto de “roubo”, como se alimentar o povo para aliviar a crise patrocinada pelos EUA fosse um crime contra a chantagem diplomática estadunidense.

Se há algum país que os diplomatas dos EUA detestem mais do que um país latino-americano recalcitrante é o Irã. A ruptura pelo presidente Trump dos acordos nucleares de 2015, negociados por diplomatas europeus e pela administração Obama, escalou a ponto de ameaçarem a Alemanha e outros países europeus com sanções punitivas se eles não violarem também os acordos que assinaram. Somando-se à oposição dos EUA à importação de gás russo pela Alemanha e outros países europeus, a ameaça dos EUA levou finalmente a Europa a encontrar uma maneira de se defender.

As ameaças imperiais já não são militares. Nenhum país (incluindo a Rússia ou a China) pode executar a invasão militar de outro país de maior dimensão. Desde a era do Vietnã, o único tipo de guerra que um país democraticamente eleito pode travar é a atômica, ou pelo menos o bombardeamento pesado como o que os Estados Unidos infligiram ao Iraque, à Líbia e à Síria. Mas agora a guerra cibernética tornou-se uma maneira de afetar as conexões de qualquer economia. E as principais conexões cibernéticas são as de transferência de dinheiro, lideradas pela SWIFT, sigla da Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication, que tem sede na Bélgica.

A Rússia e a China já tomaram a iniciativa de criar um sistema-sombra de transferência bancária, caso os Estados Unidos os desconectem do SWIFT. Mas agora, os países europeus perceberam que as ameaças de Bolton e Pompeo podem levar a multas pesadas e à captura de ativos se continuarem o comércio com o Irã, conforme exigido pelos tratados que negociaram.

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