Sputnik Brasil
O Afeganistão é conhecido por sua ampla produção de opiáceos. A Sputnik Brasil conversou com pesquisador para saber como ficará a atividade com o Talibã chegando ao poder e se o brasileiro, através do comércio de medicamentos sintéticos, pode se prejudicar.
A plantação da papoula no Afeganistão começou a ser uma produção de relevância no começo da década de 1990, e até hoje o país da Ásia Central continua a ser o maior fornecedor de opiáceos ilícitos do mundo, o que não deve mudar no futuro próximo com a retomada do Talibã (organização terrorista proibida na Rússia e em diversos países), segundo a especialistas da ONU.
"O Talibã conta com o comércio de ópio afegão como uma de suas principais fontes de renda. Uma maior produção permitirá a venda de drogas com preço mais barato e atraente e, portanto, maior acessibilidade. Este é o melhor momento para esses grupos ilícitos se posicionarem [para expandir seus negócios]" disse César Guedes, chefe do escritório de Cabul do Escritório de Drogas e Crime da ONU (UNODC, na sigla em inglês) citado pela revista Exame.
Segundo a ONU, o Talibã provavelmente ganhou mais de US$ 400 milhões (cerca de R$ 2,09 bilhões) entre 2018 e 2019 com o comércio de drogas.
Os opioides consistem em produtos sintéticos com estrutura química diferente, porém com atuação similar a dos opiáceos, produzidos a partir da papoula, e são usados como matéria-prima na produção de medicamentos sintéticos e semissintéticos, como a morfina, por exemplo.
De acordo com o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz, em entre 2009 e 2015, o Brasil apresentou aumento de 465% no uso desses medicamentos, os quais, alguns, podem causar dependência.
A Sputnik Brasil conversou com Francisco Inacio P. M. Bastos, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Ficocruz), para saber se haverá um aumento da produção de opiácios no país afegão após a tomada do Talibã, se essa questão pode ter desdobramentos no Brasil e como está o uso de sintéticos e semissintéticos na setor da Saúde brasileiro.
O especialista diz "que não há a menor dúvida" de que o aumento da produção de opiáceos acontecerá na região, uma vez que o Talibã já controlava, antes da transição, boa parte "do que chamamos de rota Euroasiática de ópio e seus derivados".
"Se realmente o Talibã se tornar hegemônico a tendência é de ampliação, portanto, esse fato é muito preocupante aos países vizinhos, especialmente para as ex-repúblicas soviéticas. Muito provavelmente essa rota vai passar por algum ponto da Rússia também […]. Como vai se dar esse comércio ainda não sabemos, mas tudo indica que se eles se mantiverem no poder sem conflitos militares, veremos uma tendência no aumento da produção sim", explicou o pesquisador.
Consequências no Brasil
Se essa expansão da produção de opiáceos pode gerar consequências no Brasil, Bastos diz que não, uma vez que o país faz parte de uma outra geopolítica, entretanto, salienta que quem pode ser afetado são os EUA, não só por questões de rotas, mas pelo país ser um dos que mais usa medicamentos produzidos com essa base.
"Como os EUA são o país com maior poder de compra do mundo, eles abarcam duas rotas: a rota europeia asiática, que vai pela costa oeste, e a rota mexicana centro-americana, que acontece pelo sul dos EUA. Essas rotas não têm relevância no Brasil."
Bastos também destaca que o tráfico de drogas brasileiro não trabalha com opiáceos naturais, por exemplo a heroína, já que não é uma droga "de rua" no Brasil. Hoje, o que se tem observado, é o aumento de opioides semissintéticos e sintéticos, que dependem pouco dessa matéria-prima.
"O que existe no Brasil é um uso indevido de opioides semissintéticos que saem da área terapêutica e vão para área do uso prejudicial e dependente, que não necessitam da matéria-prima produzida no Afeganistão, uma vez que são drogas médicas, então são produzidas de forma sintética ou semissintética. Quando são semissintéticas são necessário elementos para elaboração, mas eles são bastantes acessíveis por rotas mais curtas […] e não faz nenhum sentido, tanto do ponto de vista econômico como geopolítico, usar uma rota tão longe para adquirir esses elementos", disse o analista.
Bastos também ressalta o alto custo do transporte dessa matéria-prima até o Brasil, e que isso influencia, pelo menos a curto prazo, para um não desenvolvimento maior entre uma conectividade brasileira com insumos oriundos da Ásia Central, até mesmo pelo fato "de o Brasil ser hoje um mercado em declínio em termos de dólar, e mercadorias que atravessam muitas fronteiras, utilizam uma moeda intercambial, basicamente o dólar e o euro".
"Uma grama de heroína custaria em torno de US$ 150 [R$ 860] no Brasil, ou seja, torna ela uma substância de milionários, ela não vai para favela, portanto não há viabilidade, logística e econômica para desenvolver esse mercado", explicou o pesquisador.
Sintéticos e semissintéticos
Bastos relata que a amplificação do uso de sintéticos e semissintéticos já é bastante observado no Brasil, tanto através de análises de dados da Anvisa quanto de dados de pesquisas de campo, e a explicação para tal fato seria o aumento da diversidade de oferta dos mesmos e o seu uso massivo durante a pandemia.
"Não há como entubar uma pessoa por longo prazo ou manter uma grande quantidade de pessoas hospitalizadas sem o uso de opioides, então essa é uma tendência. A segunda é a diversificação no mercado farmacêutico, que cada vez mais multiplica ofertas de produtos, fazendo com que fique mais difícil controlar."
Entretanto, Bastos ainda pontua outros fatores, com menores influências, mas que contribuem para o contexto. Um deles seria o progresso da "química caseira ou informal", ou seja, a capacidade das pessoas transformarem produtos controlados em produtos manipulados de forma empírica. Contudo, a prática no Brasil ainda é baixa, porque depende de uma qualificação no mercado informal que o país não possui, segundo o pesquisador.
Um outro elemento que colabora é a Internet, porque através dela "se consegue obter esses medicamentos em sites que a Anvisa vem até fechando, mas a velocidade com que eles abrem é muito maior do que a velocidade que as agências conseguem fechar. Mas isso é no mundo inteiro, não só no Brasil".
Ainda sobre a Internet, Bastos evidencia o uso da dark web para a comercialização dos opioides, mas que não é possível ter riqueza de dados sobre os trâmites porque é necessária uma autorização da Justiça para realização de pesquisas.
"Esse conjunto de fatores vai ao encontro do relatório da ONU o qual aponta que haverá acrescimento no uso dessas substâncias por conta dessa combinação: mais capacidade de manipulação e evasão da detecção."
Proteção brasileira diante do aumento de opioides
Sobre como o Brasil poderia se proteger diante desse quadro, Bastos diz que o primeiro passo é não "negligenciar essa ameaça" porque quando o crack apareceu nos EUA na década de 1980 o Brasil ignorou o problema e "anos depois veio para gente o uso dessa droga", mesmo que o crack tenha uma base diferente na sua formulação do que a dos sintéticos, "temos que ter um alerta".
Outra estratégia seria "termos campanhas educativas, especialmente nessa fase da COVID-19, já que os opioides são amplamente utilizados no processo de intubação e esse uso não é inócuo para nenhuma pessoa".
Além disso, ter medidas de controles mais efetivas, que transcendam o controle clássico, também são importantes.
"Precisamos de controle em tempo real e controle digital. Hoje em dia as receitas [para medicamentos] são basicamente receitas que vão para farmácia, depois são escaneadas e enviadas para Anvisa e perde-se um tempo muito grande com isso."
Bastos conta que há um consenso geral no qual diz que não seria possível realizar esse controle em tempo real, porém, o pesquisador diz que, no caso dos antivirais, por exemplo, essa administração com maior fiscalização aconteceu. O analista acredita que seja sim viável elaborar essa técnica "com vontade política, recursos e treinamento de profissionais que atuam na área para que fiquem mais atentos a isso".
"Em um ambiente político menos tencionado e com orçamento mais flexível é possível sim esse controle. Agora, se for transformada essa maior fiscalização em uma questão política como vemos acompanhando no Brasil atualmente, com vacinas se tornando batalhas políticas, algo que é uma questão de saúde pública, aí fica mais complicado", complementou o pesquisador.
Qual a fronteira entre o uso de opioides de forma saudável e o da dependência?
O especialista diz que a aplicação dessa medicação é muito importante enquanto pacientes estão vencendo uma doença, assim como no processo de recuperação, quando a enfermidade já está mais controlada, mas as dores continuam, contudo, ele destaca que as pessoas, e até mesmo alguns profissionais da saúde, não fazem uso da alternativa de forma adequada.
"Não existe ampla consciência que é preciso administrar o opioide de forma criteriosa, com isso, a fronteira fica 'borrada', porque há a chance de, sem querer, se tornar dependente."
"A gente tem que conscientizar os profissionais de saúde de que essa medicação veio para ficar e é preciso aprender a lidar com isso […] essa questão tem uma tendência de aumento exponencial. Se não tomarmos conta, ainda mais no mundo conectado no qual estamos vivendo, onde uma pessoa passa informação a outra rapidamente, tem que tomar muito cuidado porque a chance de perder o controle é grande."
Bastos elucida que o uso dessa medicação a longo prazo é nocivo uma vez que e todas essas substâncias podem gerar dependência e "não é fácil contornar esse quadro". Além disso, o uso contínuo pode desenvolver contextos de infecção aguda muito graves, deflagrando em insuficiências respiratórias e danos neurológicos.
"Às vezes as pessoas pesam que o problema só vai acontecer se a dependência se estabelecer, mas não é verdade, muitos pacientes apresentam intoxicações agudas que, em uma parte, são provenientes desses medicamentos, e os serviços de emergência não estão tão atentos a isso."
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