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Miguel Torga |
Miguel Torga, por Bottelho |
Nacionalidade |
Portuguesa |
Data de nascimento |
12 de Agosto de 1907 |
Local de nascimento |
Vila Real, Portugal |
Data de falecimento |
17 de Janeiro de 1995 (87 anos) |
Local de falecimento |
Coimbra, Portugal |
Pseudónimo(s) |
Miguel Torga |
Ocupação |
Poeta, Médico e Escritor |
Cônjuge |
Andrée Crabbé |
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Memorial Miguel Torga (1907-2007), vizinho à ponte de Santa Clara, Coimbra, Portugal. |
Miguel Torga, pseudónimo de
Adolfo Correia da Rocha, (São Martinho de Anta, 12 de Agosto de 1907 — Coimbra, 17 de Janeiro de 1995) foi um dos mais influentes poetas e escritores portugueses do
século XX. Destacou-se como poeta, contista e memorialista, mas escreveu também romances, peças de teatro e ensaios.
Biografia
Primeiros anos e educação
Nasceu na localidade de São Martinho de Anta, em Vila Real a 12 de Agosto de 1907. Oriundo de uma família humilde de Sabrosa, era filho de Francisco Correia Rocha e Maria da Conceição Barros.
|
Aqui nasceu Miguel Torga.
Entre São Martinho de Anta
e Constantim
encontra-se o
santuário rupestre conhecido por
Fragas de Panóias. |
Em 1917, aos dez anos, foi para uma casa apalaçada do Porto,
habitada por parentes. Fardado de branco, servia de porteiro, moço de
recados, regava o jardim, limpava o pó, polia os metais da escadaria
nobre e atendia campainhas. Foi despedido um ano depois, devido à
constante insubmissão. Em 1918 foi mandado para o seminário de Lamego, onde viveu um dos anos cruciais da sua vida. Estudou Português, Geografia e História, aprendeu latim e ganhou familiaridade com os textos sagrados. Pouco depois comunicou ao pai que não seria padre.
Emigrou para o Brasil em 1920 , ainda com treze anos, para trabalhar na fazenda do tio, proprietário de uma fazenda de café em Minas Gerais. Ao fim de quatro anos, o tio apercebe-se da sua inteligência e patrocina-lhe os estudos liceais no Ginásio Leopoldinense, em Leopoldina.
Distingue-se como um aluno dotado. Em 1925, convicto de que ele viria a ser doutor em Coimbra, o tio propôs-se pagar-lhe os estudos como recompensa dos cinco anos de serviço, o que o levou a regressar a Portugal e concluir os estudos liceais.
Carreira profissional e literária
Em 1928, entra para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e publica o seu primeiro livro de poemas,
Ansiedade.
Em 1929, com vinte e dois anos, deu início à colaboração na revista
Presença, folha de arte e crítica, com o poema
Altitudes. A revista, fundada em 1927 pelo grupo literário avançado de José Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca era bandeira literária do grupo modernista e bandeira libertária da revolução modernista. Em 1930 rompe definitivamente com a revista
Presença, junto com Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca , por «razões de discordância estética e razões de liberdade humana», assumindo uma posição independente. Nesse ano, publica o livro
Rampa, lançando, no ano seguinte,
Tributo e
Pão Ázimo , e, em 1932,
Abismo. Em colaboração com Branquinho da Fonseca, funda a revista
Sinal, de efémera duração, e, em 1936, lança, junto com Albano Nogueira, o periódico
Manifesto.
Nesse ano, publica
O Outro Livro de Job.
A obra de Torga traduz sua rebeldia contra as injustiças e seu
inconformismo diante dos abusos de poder. Reflete sua origem aldeã, a
experiência médica em contato com a gente pobre e ainda os cinco anos
que passou no Brasil (dos 13 aos 18 anos de idade), período que deixou
impresso em
Traço de União (impressões de viagem, 1955) e em um personagem que lhe servia de
alter-ego em
A criação do mundo, obra de ficção em vários volumes, publicada entre 1937 e 1939. As críticas que fez aí ao franquismo resultaram em sua prisão (1940). Publica os livros
A Terceira Voz em 1934, aonde pela primeira vez empregou o seu pseudónimo,
Bichos em 1940,
Contos da Montanha em 1941,
Rua em 1942,
O Sr. Ventura e
Lamentação em 1943,
Novos Contos da Montanha e
Libertação em 1944,
Vindima em 1945,
Sinfonia em 1947,
Nihil Sibi em 1948,
Cântico do Homem em 1950,
Pedras Lavradas em 1951,
Poemas Ibéricos em 1952, e
Orfeu Rebelde em 1958.
Crítico da praxe
e das restantes tradições académicas, chama depreciativamente «farda» à
capa e batina. Ama a cidade de Leiria, onde exerce a sua profissão de
médico a partir de 1939 até 1942, onde escreve a maioria dos seus
livros. Em 1933 concluiu a licenciatura em Medicina pela Universidade de Coimbra. Começou a exercer a profissão nas terras agrestes transmontanas, pano de fundo de grande parte da sua obra. Dividiu seu tempo entre a clínica de otorrinolaringologia e a literatura.
Após a Revolução dos Cravos que derrubou o Estado Novo em 1974, Torga surge na política para apoiar a candidatura de Ramalho Eanes
à presidência da República (1979). Era, porém, avesso à agitação e à
publicidade e manteve-se distante de movimentos políticos e literários.
Autor prolífico, publicou mais de cinquenta livros ao longo de seis décadas e foi várias vezes indicado para o Prémio Nobel da Literatura.
Casamento e últimos anos
|
Casa de Miguel Torga,
em São Martinho de Anta,
Sabrosa, abre até ao
Verão
como um espaço museológico
e de memória do escritor e médico |
Casou-se com Andrée Crabbé em 1940, uma estudante belga que, enquanto aluna de Estudos Portugueses, com Vitorino Nemésio em Bruxelas, viera a Portugal fazer um curso de verão na Universidade de Coimbra. O casal teve uma filha, Clara Rocha, nascida a 3 de Outubro de 1955, e divorciada de Vasco Graça Moura.
Torga, sofrendo de cancro, publicou o seu último trabalho em 1993, vindo a falecer em Janeiro de 1995.
A sua campa rasa em São Martinho de Anta tem uma torga plantada a seu lado, em honra ao poeta.
A origem do pseudónimo
Em 1934, aos 27 anos, Adolfo Correia Rocha cria o pseudónimo "Miguel"
e "Torga". Miguel, em homenagem a dois grandes vultos da cultura
ibérica: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Já Torga
é uma planta brava da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da
rocha, de flor branca, arroxeada ou cor de vinho, com um caule
incrivelmente rectilíneo.
A obra de Torga
A obra de Torga tem um carácter humanista: criado nas serras
transmontanas, entre os trabalhadores rurais, assistindo aos ciclos de
perpetuação da natureza, Torga aprendeu o valor de cada homem, como
criador e propagador da vida e da natureza: sem o homem, não haveria
searas, não haveria vinhas, não haveria toda a paisagem duriense, feita
de socalcos nas rochas, obra magnífica de muitas gerações de trabalho
humano. Ora, estes homens e as suas obras levam Torga a revoltar-se
contra a Divindade Transcendente a favor da imanência: para ele, só a
humanidade seria digna de louvores, de cânticos, de admiração: (
hinos
aos deuses, não/os homens é que merecem/que se lhes cante a
virtude/bichos que cavam no chão/actuam como parecem/sem um disfarce que
os mude).
Para Miguel Torga, nenhum deus é digno de louvor: na sua condição
omnisciente é-lhe muito fácil ser virtuoso, e enquanto ser sobrenatural
não se lhe opõe qualquer dificuldade para fazer a natureza - mas o
homem, limitado, finito, condicionado, exposto à doença, à miséria, à
desgraça e à morte é também capaz de criar, e é sobretudo capaz de se
impor à natureza, como os trabalhadores rurais transmontanos impuseram a
sua vontade de semear a terra aos penedos bravios das serras. E é essa
capacidade de moldar o meio, de verdadeiramente fazer a natureza,
mal-grado todas as limitações de bicho, de ser humano mortal que, ao ver
de Torga, fazem do homem único ser digno de adoração.
Poesia
- 1928 - " Ansiedade " (fora do mercado)
- 1930 - Rampa
- 1931 - Abismo
- 1936 - O outro livro de Job
- 1943 - Lamentação
- 1944 - Libertação
- 1946 - Odes
- 1948 - Nihil Sibi
- 1950 - Cântico do Homem
- 1952 - Alguns poemas ibéricos
- 1954 - Penas do Purgatório
- 1958 - Orfeu rebelde
- 1962 - Câmara ardente
- 1965 - Poemas ibéricos
- 1997 - Poesia Completa, volume I
- 2000 - Poesia Completa, volume II
Prosa
- 1931 - Pão Ázimo
- 1931 - Criação do Mundo
- 1934 - A Terceira Voz
- 1937 - Os Dois Primeiros Dias
- 1938 - O Terceiro Dia da Criação do Mundo
- 1939 - O Quarto Dia da Criação do Mundo
- 1940 - Bichos
- 1941 - Contos da Montanha "Diário I"
- 1942 - Rua
- 1943 - O Senhor Ventura "Diário II"
- 1944 - Novos Contos da Montanha
- 1945 - Vindima
- 1946 - "Diário III"
- 1949 - "Diário IV"
- 1950 - Portugal'
- 1951 - Pedras Lavradas "Diário V"
- 1953 - "Diário VI"
- 1956 - "Diário VII"
- 1959 - "Diário VIII"
- 1974 - O Quinto Dia da Criação do Mundo
- 1976 - Fogo Preso
- 1981 - O Sexto Dia da Criação do Mundo
- 1982 - Fábula de Fábulas
- 1999 - "Diário: Volumes IX a XVI"(1964-1993), Publicações Dom Quixote e Herdeiros de Miguel Torga, 2.ª edição integral, ISBN 972-20-1647-4
- Indice dos volumes
- Diário IX (15-1-1960/20-9-1963)
- Diário X (5-10-1963/30-7-1968)
- Diário XI (2-8-1968/6-4-1973)
- Diário XII (17-5-1973/22-6-1977)
- Diário XIII (8-7-1977/20-5-1982)
- Diário XIV (21-5-1982/11-1-1987)
- Diário XV (20-02-1987/31-12-1989)
- Diário XVI (11-1-1990/10-12-1993)
O seu
Diário (1941 - 1994), em 16 volumes, mistura poesia, contos, memórias, crítica social e reflexões. No último volume, diz:
"Chego
ao fim, perplexo diante de meu próprio enigma. Despeço-me do mundo a
contemplar atônito e triste o espetáculo de um pobre Adão paradoxal,
expulso da inocência sem culpa sem explicação."
Peças de teatro
- 1941 - "Terra Firme" e "Mar"
- 1947 - Sinfonia
- 1949 - O Paraíso
- 1950 - Portugal
- 1955 - Traço de União
Ensaios e Discursos
Ensaios e Discursos, publicações Dom Quixote,Lisboa, 2001, ISBN 972-20-1681-4 , ‘’tomou por base, respectivamente,os textos da 6.ª edição de
Portugal, Coimbra, 1993; da 2.ª edição revista de
Traço de União, Coimbra, 1969; e da edição de
Fogo Preso, Coimbra, 1989”, conforme nota do editor, p. 8.
Traduções
Seus livros foram traduzidos em diversos idiomas, algumas vezes
publicados com um prefácio seu: espanhol, francês, inglês, alemão,
chinês, japonês, croata, romeno, norueguês, sueco, holandês, búlgaro.
Prémios e homenagens
- 1969 - Prémio do Diário de Notícias.
- 1976 - Prémio de Poesia da XII Bienal de Internacional de Poesia de Knokke-Heist (Bélgica)
- 1980 - Prémio Morgado de Mateus, com Carlos Drummond de Andrade
- 1981 - Prémio Montaigne da Fundação Alemã F.V.S.
- 1989 - Prêmio Luso-Brasileiro Luís de Camões
- 1991 - Prémio Personalidade do Ano
- 1992 - Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores
- 1993 - Prémio da Crítica, consagrando a sua obra
- 1995 - O seu nome foi colocado, em 3 de Maio de 1995, numa rua da Freguesia de Santa Maria, no Concelho de Lagos.
Bibliografia
- FERRO, Silvestre Marchão. Vultos na Toponímia de Lagos. 2.ª. ed. Lagos: Câmara Municipal de Lagos, 2007. 358 pp. ISBN 972-8773-00-5.
- TORGA, Miguel. Contos da Montanha. [S.l.: s.n.], 1996. ISBN 85-209-0720-2.
Começa logo porque fica no cimo de Portugal
Adolfo Correia da Rocha chegou a este mundo em 12 de Agosto de 1907 - “
…nasci / Como um cabrito / Ou como um pé de milho”-, em S. Martinho de Anta
(“ou das Antas, cujo nome atesta a sua ancestralidade megalítica”
),
aldeia transmontana no concelho de Sabrosa, tutelada pela Senhora da
Azinheira, “a branquejar no alto da serra”, “empoleirada na sua fraga a
chorar ainda o filho crucificado”
.
“A sua terra é para ele como para uma planta: sítio de deitar raizes”
.
“É debaixo do
chão que me procuro.”
Desta
terra sou feito
Fragas são os meus ossos,
Húmus a minha carne.
“S. Martinho de Anta não é um lugar onde, mas um lugar de onde…”
,“…a terra onde nasci e de onde verdadeiramente nunca saí”.
“Este meu apego ao berço já não é tanto o mistério de raízes como um refrigério de cicatrizes”. “Tropeço em cada pedra, bebo em cada fonte, vou de anjo em cada procissão”.“O meu segredo é este: curo as chagas com pensos de terra”, na “beleza viril duma paisagem onde sempre me apetece parir ou morrer”.
“O destino” “plantou-me aqui e arrancou-me daqui. E nunca mais as raízes me seguraram bem em nenhuma terra.”
A povoação é sobrançada por um votivo olmo negro, o negrilho, presente nas páginas autobiograficas de A Criação do Mundo, como herói da festa da árvore da quarta classe dos pequenos plantadores- “lá está, no largo do povo, alto e frondoso como o sonhámos então”-
que Miguel Torga cantou como “mestre da inquietação serena”, único
poeta da terra onde ambos haviam nascido (“Os meus versos são folhas dos
seus ramos”) e por cujo declínio temeu ao findar os oitenta anos.
Como José e Maria, seus
irmãos, Adolfo era filho dos lavradores Francisco Correia Rocha - “bom
no ofício de cavador” “que ganhava os dias a fazer o serviço de
vendeiro”, “mordomo jurado da Senhora da Azinheira” e “omnipresença
moral” - e Maria da Conceição Barros, “sensível ao colorido das coisas e
ao sabor das palavras”,
que trauteara para ele velhas loas, e com quem fez duetos em criança, muito antes de os unir o “entendimento tácito” e do poeta a dizer, na sua morte, “a eterna mulher entre as mulheres”.
O casal trabalhava a terra difícil (“não há desgraça maior dentro da pátria”) entre as fragas de xisto da Terra Quente
e as de granito da Terra Fria, a nordeste, onde este novo Anteu ,
chegado da “terra de todos” com alma de poeta, sempre havia de buscar
alento para lavrar os versos e a vida.
O baptismo, em 21 de Setembro de 1907 na Igreja Paroquial,
confirmou o nome civil que lhe fora dado, ainda longe do “baptismo
literário” que, aos 27 anos,
a si mesmo ele se daria e mais tarde declinou
como “destino impiedoso, impiedosamente imposto”.
A primeira comunhão ainda lhe foi recordada, no longínquo Abril
de 1985 e no “silêncio da nave” da capela de Roalde, por alguém que a
fizera ao mesmo tempo e “não esquecera o rapazinho que predicara aos
companheiros no acto solene”.
“O solar da família, térreo, de telha vã, encimado pelo seu brasão de armas esquartelado, com enxadões em todos os campos”, veio a ser remodelado em 1960.
Aos 75 anos particularizaria: “A casa paterna. A matriz
sagrada da família.” “Chego e adeus solidão. Fico logo acompanhado de
todos os meus penates. Presenças virtuais, mas agentes, estimulam-me o
entendimento, pacificam-me o coração, corrigem-me a pauta dos versos”.
“Os poetas mudam-se mas não mudam”.
Aos 80, diversamente, mas não com menos verdade,
particularizou: “Desde que a deixei pela primeira vez” “passei a
sentir-me nela, quando venho, como que emprestado, ao mesmo tempo eu e
um outro, na “sensação estranha de ser eterno e provisório no mesmo
instante, sem pé num chão onde nasci e não pude crescer, e sei que
cresci”.
"…a escola, ao fundo do povo, tinha mimosas à volta.”
Mas a gramática e a tabuada aprendeu-as o pequeno Adolfo,
entre 1913 e 1917, com o senhor Botelho, professor primário em S.
Martinho de Anta, embora tenha sido na escola de Sabrosa o exame da
quarta classe no qual ficou
distinto.
O pai ofereceu-lhe um cavaquinho, comprado no
Bazar dos Três Vinténs
(“tanto dedilhei na zanguizarra que lhe rebentei as cordas”), e a
família celebrou a distinção assistindo a um filme no animatógrafo de um
conterrâneo
, com o desgosto antecipado de não poder proporcionar-lhe o ensino secundário no liceu de Vila Real.
Ainda sem forças para revolver a
terra foi mandado, aos dez anos, para uma casa apalaçada do Porto,
habitada por parentes da família que a própria mãe servira antes de
casar.
O pequeno criado ganhava quinze tostões por mês e
dormia num cubículo de campainha à cabeceira. Fardado de branco servia
de porteiro, “moço de recados”, regava o jardim, “limpava o pó e polia
os metais da escadaria nobre”, “atendia campainhas”, corria a cortina
e mudava os cenários nas representações das crianças da família que montavam nele nas suas brincadeiras.
De “génio assomadiço” (“Vive pelos nervos”
), agravado pelo espectáculo daquelas vidas diferentes e pela precoce intuição de estar a ser privado do direito à infância, o
mar,
então descoberto (“Quando pela primeira vez na meninice o vi em Leça ,
se não preteri o Marão nativo, ancorei-o em água salgada. E fiquei com
duas referências cósmicas na vida”
), entrava-lhe nos sonhos nocturnos e acenava-lhe com a ilusão de embarcar para o Brasil.
Ao fim de um ano foi despedido, acusado de ingratidão pelos
patrões que opunham, ao “asseio” e ao alimento
facultados, a constante insubmissão do pequeno rapaz de onze anos
sempre pronto a erguer-se contra as injustiças do que o rodeava .
A família humilhada e a
reprovação da aldeia, reforçaram o propósito paterno de o internar no
Seminário de Lamego (transformado em quartel pela República e os
seminaristas alojados em casas particulares) onde viveu “um dos anos
cruciais”da sua vida, tendo melhorado os conhecimentos do português, da
geografia, da história, aprendido o latim e ganhado familiaridade com os
textos sagrados .
Regressado “com boas notas” nas férias de verão, o cabelo
rapado à escovinha e a sobrepeliz de quando ajudava à missa,
forjavam-lhe uma nova imagem, um novo
respeito. Viu-se tratado
então, em casa e na povoação, “como se fora outro” e bento, cercado por
uma espécie “de redoma”, “isolado dos grandes e dos pequenos”.
“Irremediavelmente sozinho no mundo”, fugia-lhe a infância “das palavras
e dos gestos”.
Como “sem dar bem conta disso perdera a fé” – já seminal da
confissão do “cristão do Sinai e não do Gólgota”, como Nemésio observou
em 1939, ou, como ele próprio assinalou: ”…medularmente religioso
faltava-me, contudo, a humildade necessária para acreditar” – no fim das
férias comunicou ao pai que não seria padre (comutando assim o destino
de “papa-hóstias” que ele
ouvira referir ao mestre-escola
).
A grande aventura juvenil
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Firme na sua resolução a família teve de optar pela última alternativa
de o
menino grangear o pão para a boca, no dia a dia, e assegurar o do futuro.
Foi então enviado, aos doze anos, para o Brasil ( Minas Gerais) a fim
de trabalhar, no caso de vir a ser aceite, numa fazenda que pertencia a
um tio e respondera ao apelo do irmão: “Quem tem os filhos que tome
conta deles”.
Embarcado no paquete Arlanza
,
numa terceira de “barafunda e lágrimas”, por sobre um “deserto azul”
visto do convés, desembarcou no Brasil de “ilhas, e morros, e casas e
barcos, e gente a acenar” com uma “grande aflição” dentro dele. O tio,
que afinal o aguardava com uma fotografia na mão, transportou-o
directamente a um “armazém de roupas” para que trocasse o “fato de
surrobeco das Pintas” e o “chapéu que também não prestava” -“Nem me
reconhecia no preparo em que fiquei”-, rapidamente se apercebendo o
pequeno emigrante que “daquele estranho e dono ao mesmo tempo”, que o
olhava como a “bichinho que saiu da toca”, não havia compreensão a
esperar.
“Moleque do terreiro” na imensa
Fazenda de Santa Cruz (em cujo interior operavam até duas estações de caminho de ferro) “nada do que aprendera em Agarez
servia ali”.“Ele e os insultos da minha tia ensinaram-me, em pouco
tempo, a obrigação de todos os dias”: “carregar o moinho, mungir as
vacas”, “tratar dos porcos, ir buscar os cavalos da cocheira ao pasto,
limpá-los e arreá-los, rachar lenha, varrer o pátio e atender a
freguesia que vinha comprar fumo, cachaça, carne seca, feijão, ou trocar
grão por fubá”; ir buscar o correio à povoação; “fazer a escrita da
fazenda, verificar à noite se as portas e as janelas estavam bem
fechadas.”
“Simples máquina de trabalho” “era o último a deitar-me e o
primeiro a erguer-me”, “sem domingos nem dias santos” para que “a
engrenagem funcionasse com perfeição”.
Quatro anos decorridos o tio,
porventura cansado das resistências familiares ao “moiro de trabalho” do
seu sangue, “de têmpera igual à dele”, “capaz de entender o que
significava uma bagada de suor”, e reconhecendo, por um qualquer obscuro
instinto, que era de sentido superior a diferença de que o acusavam,
matriculou-o no Ginásio de Leopoldina.
O adolescente esforçou-se por ser “o melhor da classe”, logo
lhe sendo reconhecida a superioridade que o “afiançava ao futuro”, tal
como primeiro prognosticara o professor Botelho. Com dezasseis anos “lia
quanto [lhe] vinha ter à mão”, sabendo “de cor a biografia de todos os
autores que figuravam na selecta”. Datam de então as suas primícias
poéticas à maneira de Casimiro de Abreu, em breve aprendendo a detestar
os “lirismos postiços”.
Ao mesmo tempo descobria o cinema e os heróis do mudo, Charlie Chaplin e Buster Keaton. A passagem pela Presença, com o seu culto pela sétima arte, havia
de fazer-lhe
juntar a estes primeiros heróis, alguns outros do cinema falado.
Mas o sentimento de que vivera, na “pequena cidade cheia de sol”, “o espaço que ia do desespero cego à esperança lúcida”,
levou-o a reconhecer que a sua “inquietação já não cabia ali”.
Em
1925, na convicção de que ele havia de vir a ser “doutor em Coimbra”, o
tio propôs-se pagar-lhe os estudos como recompensa dos cinco anos de
serviço.
Regressou a Portugal acompanhado pelos familiares , “brasileiros torna-viagens”, viajando num outro paquete da
Mala Real Inglesa, de nome Andes.
Deixava para trás o exílio de cinco anos onde “nem os ninhos eram
iguais”, “os pássaros cantavam doutra maneira, os frutos tinham outro
gosto e, onde menos se esperava, havia cobras disfarçadas, enormes,
bonitas, sempre de cabeça no ar, à espera.”
“Crescera por fora e por dentro.” “Aprendera a objectivar a vida”, embora
sempre tivesse sentido
aquele chão como “fabuloso e mágico” e aonde (havia de
reconhecê-lo) pudera ser “selvagem e natural”.
Na viagem, fartando “os olhos de letra redonda”, o futuro romancista e
autor de contos descobria, com Machado de Assis, que “os autores
procuravam criar símbolos perenes de realidades quotidianas”, através de
“personagens que punham em movimento”.
O homem maduro havia de registar com distanciamento e quietação:
“Um dos seus títulos de glória é ter passado a adolescência no Brasil”
, “…o Brasil amei-o eu sempre, foi o meu segundo berço, sinto-o na memória, trago-o no pensamento”.
O paquete atracou, no termo da viagem, em “Lisboa,
pálida, espraiada” nascida “do mar, do Tejo e das colinas” datando
talvez de então uma primeira intuição do viajante de que a pátria era uma “…nesga de terra/ Debruada de mar”.
Os pais estranharam o
sotaque, pediram-lhe que conversasse “à moda de cá” e, escutando à
lareira o seu “monótono romance de sofrimentos”, choraram, não por ele,
mas pelo “menino de doze anos” do qual se haviam separado um lustro
antes. Sentia, então, que o cercava “de novo um muro de solidão”.
Passando a Coimbra, aluno interno com oito escolares muito
mais novos - “Gulliver entre os pigmeus”- num Colégio particular,
propriedade dum casal que ministrava o ensino das ciências, das línguas e
a lição, natural, de existências possíveis “de afeição, de
sensibilidade e de cultura”, foi ainda a solidão, mas “rodeada de
livros” e ao som de Beethoven tocado num piano doméstico, que lhe fez
ganhar o desafio de vencer, em dois anos, os cinco do primeiro e segundo
ciclo do curso liceal de sete. Inscreveu-se, em seguida, no Liceu José
Falcão onde completou o terceiro ciclo num só ano ficando apto a cursar
a
Universidade.
“Nunca tivera tempo para fitar demoradamente as coisas e os seres.
E desforrava-me finalmente dessa fome profunda”. Compunha então
sonetos, “arremedando” os de Antero, e já então para ele “a literatura
relevava do sagrado”.
Em 1928, com 21 anos,
inscreveu-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra :
“…só na arte de Hipócrates poderia encontrar ao mesmo tempo uma
profissão e um caminho humano paralelo ao que, sem diplomas de nenhuma
espécie, tencionava seguir”.
No “artista, o mais receptivo e perceptivo dos mortais”, “a caneta
que escreve e a que prescreve revezam-se harmoniosamente na mesma mão”.
Já estudante universitário na cidade “humanamente mais desenraizada de Portugal”
,
“praticamente isolado”, “alma penada a caminho das aulas ou a vaguear
pelas enfermarias”, passou nesse ano “a letra de forma suspiros rimados”
que intitulou
Ansiedade, “uma pobre colectânea de sonetos e canções” que mereceu apenas “críticas reprovativas”
e ele nunca reimprimiu.
Residia então na república
Estrela do Norte, “habitada por nortenhos rudes e aplicados”, e frequentava as tertúlias literárias e políticas da pastelaria
Central, do café
Arcádia e da
Farmácia da Mariazinha.
Na pastelaria travou conhecimento com as personalidades
presencistas; no café e na farmácia reunia-se com outros intelectuais de
esquerda.
A modificação de tom da voz poética
foi despoletada pela
dissecação do primeiro cadáver que lhe inspirou “Balada da Morgue” com
a qual “verdadeiramente assinei pacto com Orfeu”. Os fenómenos da morte
e da vida (o “ritual” e “a transcendência do parto” aureolavam
o segundo) impunham-se-lhe como balizas da profissão.
Em 1929, com 22 anos,
deu
início à colaboração na revista
Presença,
folha de arte e crítica, com o poema “Altitudes…”, discipular de Mário de Sá-Carneiro.
A revista
, fundada em 1927 pelo “grupo literário
avançado” de José Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, era
bandeira “literária do grupo modernista” e era também, “bandeira
libertária”. O escolar de Medicina abraçou então “com entusiasmo o
movimento renovador” cujo alvo era “o autêntico e o profundo” do “novo
tempo romanesco de Proust e de Gide
”, vivendo, em grupo, “uma euforia colectiva”.
“A presença castrense na
vida administrativa do país”, em consequência da ditadura (instituída
pelo golpe militar de 1926 que pusera fim ao governo constitucional),
fazia-o “abominar a caserna e o espírito de casta”. Convocado pela
inspecção foi sujeito a uma recruta severa na qual se já entrara “civil
por temperamento”, saiu, também, “paisano por convicção”.
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Iam aparecendo, entretanto,
“heróicos e escanda-losos” os números da folha em que colaborava. Joyce,
Chestov, Bergson, Fernão Mendes Pinto, Dostoiewsky, Cecília Meireles,
Ribeiro Couto habitavam-na, à vez, no “esforço hercúleo de abalar as
raizes de Coimbra petrificada na tradição” e de fazer “reviver a lírica
palpitante e viril de Camões.”
Tal intervenção já então a entendia Adolfo Rocha como o único modo
de combate “numa pátria que é o cemitério da própria língua” e, à
época, sem a compreensão de “que não há uma cultura ortodoxa”.
“Junqueiro sabia: a língua é uma pátria”
, veio a escrever anos depois, talvez também ressoando nele a voz de Pessoa do
Livro do Desassossego: “Minha pátria é a língua portuguesa”.
Explodia, entretanto, a dissidência latente entre os colaboradores e os directores da
Presença, por “razões de discordância estética e razões de liberdade humana”.
Liderada por Adolfo Rocha, solidarizavam-se Branquinho da Fonseca (sob a égide dos dois, saiu em Julho, um número de
Sinal, publicação literária
que o principal promotor veio, posteriormente, a reconhecer “um
desastre. Era ingénuo e tumultuoso” e projectava a “minha solidão.”
)
e Edmundo de Bettencourt. Em folha volante, sob a forma de carta, os
três assacavam aos mentores da revista, a intenção de fixar “um tipo
único de liberdade”, “um caminho padrão”, e previam a sua “queda
próxima num arcaísmo estético das escolas…”
Os “moldes estéticos” da revista e o “seu subjectivismo macerador” haviam feito enquistar o movimento.
A sua colaboração na
Presença cessou com o texto em prosa :
O Caminho do Meio, alegoria sobre o satanismo do Homem que pretendeu “criar o dogma da sua própria divindade”.
Foram seis as composições em verso de Adolfo Rocha publicadas na revista: “
Altitudes”, “
Baloiço” e “
Inércia”
, “
Remendo”
, “
Balada da Morgue” e “
Compenetração”.
Rampa, poemas veio a público,
em
Junho de 1930, com a chancela das Edições Presença, tendo decorrido, a
propósito, uma troca de cartas entre Adolfo Rocha e Fernando Pessoa a
quem o jovem poeta enviara um exemplar. O destinatário, embora lhe
manifestasse apreço positivo, sugeria-lhe, a pertinência operativa duma
“sensibilidade desintelectualizada” e duma “
inteligência dessensibilizada”.
O ofertante, ofendido “na quarta dimensão”, reagira
declarando ridículos os intelectuais e já passada a “era dos Mestres”.
Na posse do “conceito de poesia” acremente reclamada ao correspondente,
depreciava o culto da “consciência de si mesmo”, acusando como “postiça”
a inspiração
que a cultivasse.
Em carta a Gaspar Simões, Álvaro de Campos fora responsabilizado pela primeira missiva. Mas, sob o lema dos estóicos,
patere et abstine, fora Pessoa ele-mesmo que respondera e
foi ainda ele quem
fez cessar ali a contenda.
Em 1931, contista em Pão Ázimo e poeta em Tributo, Adolfo Rocha já aparecia a público em edição de autor, como aconteceu com Abismo, no ano seguinte, e como aconteceria pela vida fora.
Mas o “campónio de Agarez” e o “poeta do absoluto” degladiavam-se dentro dele.
No início de 1933 Adolph
Hitler, a breve prazo líder do Terceiro Reich, era nomeado Chanceler.
Em Portugal o regime de Partido Único ou União Nacional (instituída três
anos antes) fundou o Estado Novo, fez ratificar uma Constituição
corporativa, criou a Polícia Internacional e de Defesa do Estado
(PIDE), proibiu as oposições
e criou o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), dirigido por António Ferro, ideólogo do regime e homem de cultura.
Concluído o curso
universitário em 8 de Dezembro de 1933, “na hora em que esperava merecer
da vida a alegria íntima do triunfo”, era “a imagem dum homem aterrado”
que o espelho lhe devolvia. Colava-se-lhe, talvez,
o único verso que ele recuperou do volume Ansiedade, cinquenta anos mais tarde, inscrevendo-o como abertura da Antologia Poética de 1981: “Sinto o medo do avesso”( quiçá o “terror fundo que não diz donde vem nem para onde vai”, como
ele anotou no dia da formatura).
Regressado a S. Martinho de
Anta a hostilidade de uns e o precavimento de outros erguiam-se contra o
novo médico, com “fama de revolucionário” e labéu de ateísmo, que
lograra transcender a “terrosa condição da família”.
Esta, sentia ele então, deixara há muito de o compreender. “A partida
de casa aos dez anos fora catastrófica.”: “perdera definitivamente o
lugar privilegiado no seio da tribo. Estava sem estar”, julgando, então,
que já não era dali.
“Hostilizado nos jornais pelos antigos companheiros” ainda devido ao “infecto caso da cisão”
, longe das livrarias e dos amigos”, dos cinemas e dos cafés, mudou-se, para Vila Nova
, a meio do ano de 1934, concelho de Miranda do Corvo, distrito de Coimbra, para exercer o seu
munus de clínico geral, excêntrico ao apertado torno familiar e conterrâneo.
As circunstâncias colocavam-no , de novo, num “ Portugal velho e
rotineiro, de senhores e servos” cuja aspereza ele bem conhecia. Mas o
lugar permitia-lhe saborear a “pacatez da vida aldeã”, apesar das
maquinações de classe dos colegas locais e das “visitas meteóricas a
Coimbra duas vezes por semana”.
Fonte: A Voz do Chão
Quase um Poema de Amor
Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.
Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
Miguel Torga, in 'Diário V'