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Anestesias: Quando a cabeça ignora a dor
Como funciona a anestesia, que serve para evitar qualquer sensação dolorosa
Na sala de cirurgia, o anestesista controla as funções vitais do paciente. Além de, claro, evitar qualquer sensação dolorosa, graças a misturas delicadas de drogas.De surpresa, explode a dor intensa do lado direito da barriga. A pessoa corre ao médico, que lhe apalpa o ventre, antes de diagnosticar a apendicite aguda. Emergência. Poucas horas depois, lá está ela, deitada na mesa de operações, para extirpar o órgão doente. E talvez mal se dê conta de que, ao lado do cirurgião, há outro médico na sala, cujo papel é tão importante quanto o daquele que vai Ihe retirar o apêndice inflamado. Além de afastar qualquer ameaça de dor, que tornaria cirurgias tão rotineiras legítimas sessões de tortura, este segundo especialista vai controlar a respiração, a frequência cardíaca, a pressão arterial e a temperatura do paciente. Enfim, pesa sobre ele a responsabilidade de manter as funções vitais de quem está sendo operado. Se ocorrer uma parada cardíaca, por exemplo, é esse médico que deve agir, para salvar a vítima. Mesmo assim, quando deixam o hospital, poucos pacientes sabem dizer o nome do anestesista — eminência parda dos centros cirúrgicos — que participou de sua operação.
“O anestesista acompanha o paciente, durante a cirurgia, com o mesmo rigor dispensado àqueles que estão internados em unidades de terapia intensiva, as UTIs”, define a professora Judymara Lanzi Gozzani, da Escola Paulista de Medicina (EPM). Formada em 1977, a anestesista, de fala pausada, diz que escolheu essa área da Medicina por seu caráter dinâmico. Pois a anestesia não se resume num gás fabuloso ou numa injeção milagrosa, que induzem ao sono e eliminam a dor, em um só lance. “Não usamos uma única droga excepcional, capaz de fazer tudo”, diz outro especialista, Irimar de Paula Posso, professor de Anestesiologia da Universidade de São Paulo. “O que existe é um conjunto de substâncias que vão sendo associadas antes, durante e depois da intervenção.” Dosar cada uma delas em cada caso pode ser considerado uma arte. Todas têm efeitos colaterais e o segredo é usar doses pequenas de várias drogas, para minimizar os efeitos nocivos delas isoladamente. Uma deve compensar o defeito de outra e, de quebra, somar as virtudes.
Para preparar
esse coquetel de fármacos, o especialista em Anestesiologia leva em
conta as características e o estado de saúde do paciente, o tipo e a
duração da cirurgia, as condições do hospital. O alvo principal, sempre,
é eliminar a dor, ou seja, produzir aquilo que os médicos chamam de
analgesia. A dor é uma espécie de sirene do organismo. “Assim como
existem terminações nervosas na pele que detectam o frio, por exemplo,
há outras que identificam agressões, como a inflamação de um órgão ou um
arranhão”, explica a professora Judymara, da EPM. Esse sistema de
alarme, batizado de nociceptor, manda mensagens na forma de ondas
elétricas, que percorrem os nervos periféricos até o cérebro, seu
destino final. Ali, podem desencadear as mais diversas reações, desde
mecânicas — como levantar o dedo, para não queimá-lo numa chapa quente —
a psicológicas, envolvendo todo tipo de sensação relacionada ao
sofrimento.
Ao calar o aviso da dor, os anestesistas pretendem
evitar esse conjunto de reações. Muitas vezes, o médico corta a
comunicação com o cérebro de uma região específica do corpo — é quando
aplica a chamada anestesia local, comparável a um corte em um cabo de
telefone. Ela impede a condução do estímulo elétrico, para que a
informação não alcance o sistema nervoso central. Esse princípio é
imutável, embora as formas de administrar o anestésico variem bastante.
Alguns são de uso tópico e, até há bem pouco tempo, eles só agiam quando
espalhados sobre mucosas, a pele fina e mais irrigada por vasos sanguíneos, que reveste os órgãos internos, assim como os olhos, a boca,
as narinas e os genitais. Recentemente, farmacêuticos criaram o EMLA
(sigla em inglês para mistura eutética de anestésicos locais),
anestésico capaz de penetrar na pele de qualquer região do corpo, mas
que só faz efeito depois de trinta minutos. O EMLA já é usado em
cirurgias de pequeno porte, como a remoção de uma pinta.
O segundo
e mais comum método de aplicação da anestesia local é o da agulha, que
despeja as drogas no ponto exato da intervenção cirúrgica ou nos nervos
mais próximos. Às vezes, essas substâncias interferem também naquelas
vias nervosas responsáveis pelos movimentos. Quando se deseja obter esse
efeito de propósito, é necessário empregar um anestésico mais potente,
porque as fibras nervosas dos movimentos são bem mais grossas do que as
delicadas fibras da sensibilidade dolorosa. Existe, ainda, uma terceira
classe de anestesias locais — as espinhais, em que as drogas são
injetadas diretamente na medula da coluna vertebral. É para ali, afinal,
que todos os nervos espalhados pelo corpo convergem, antes de
alcançarem o cérebro.
Para impedir a dor, as moléculas do
anestésico devem se combinar com a membrana dos nervos. Precisam ser,
como ela, constituídas de gorduras. Ao se unir à membrana, o anestésico
altera o seu funcionamento. “A mensagem elétrica da dor ocorre quando
íons de sódio, do lado de fora da célula nervosa, conseguem penetrá-la
por pequenos espaços, semelhantes a poros”, descreve a médica Judymara.
“Os anestésicos são capazes de bloquear essas minúsculas portas. Assim,
não se cria a onda nervosa e a informação da dor nunca chega ao
cérebro.” Mas isso, às vezes, não dura muito.
Certas drogas usadas
nas anestesias locais aumentam o calibre dos vasos sanguíneos, sendo
absorvidas mais depressa. Resultado: seu efeito é efêmero porque
permanecem menos tempo em contato com as terminações nervosas, antes de
serem arrastadas pelo sangue. Para driblar esse inconveniente, na
fórmula do anestésico local — por exemplo, o do dentista — inclui-se um
vasoconstritor, como a adrenalina. Isso também serve para reduzir o
aspecto tóxico. “O perigo dos anestésicos locais é proporcional à
quantidade captada pela circulação”, explica a anestesista Maria dos
Prazeres Simonetti, que leciona no Instituto de Ciências Biológicas da
Universidade de São Paulo. “Essas drogas podem afetar o funcionamento
dos órgãos.” Se o anestésico bloqueia o impulso que faz o coração bater,
o resultado é a parada cardíaca.
A receita da anestesia local
ainda inclui outro ingrediente: um sedativo, para reduzir a ansiedade do
paciente acordado. O grande desafio do anestesista, porém, ocorre
quando tem de alterar o funcionamento do próprio sistema nervoso central
do paciente. É a anestesia geral, que, de certa forma, faz o cérebro
funcionar em marcha lenta. Mais complexa do que a local, ela integra
várias drogas, numa alquimia delicada, para que se mantenham reflexos
importantes, como a pressão arterial. Em suma, a anestesia geral pode
ser considerada um estado de coma produzido farmacologicamente.Há dois
grupos básicos de anestésicos gerais: os inalatórios e os intravenosos,
que costumam ser aplicados juntos cada qual com o seu papel. Aquele que
aparece sempre nos filmes de cinema — a máscara infalível, que bota o
paciente para dormir —é o óxido nitroso ou gás hilariante. Sintetizado
em 1776, ele é, até hoje, o anestésico inalatório mais usado no mundo
inteiro. “Por ser pouco potente, o gás hilariante não consegue fazer a
anestesia sozinho. Para isso, teria de ser inalado em concentrações tão
altas, que o paciente morreria por falta de oxigênio”, diz o professor
Irimar Posso. “Ele funciona como uma espécie de música de fundo”,
compara.Outros anestésicos inalados através de máscaras são o éter e
seus sucessores. Eles produzem o sono, aliviam a dor, relaxam os
músculos e — um detalhe importantíssimo — causam amnésia, enquanto duram
na circulação sanguínea. Sim, para o anestesiado, a falta de memória é
fundamental. Graças a ela, ninguém padece com lembranças desagradáveis,
como a voz do médico pedindo para passar o bisturi ou comentando o
estado das visceral, algo que os leigos não costumam suportar.Tanto o
óxido nitroso como os líquidos voláteis, feito o éter, seguem o mesmo
trajeto no organismo. Entram pelas narinas, através de máscaras ou
aparelhos, alcançam os pulmões e, dali, passam para o sangue. Quando
fazem escala no cérebro, inibem progressivamente o trabalho das células
nervosas, dependendo da concentração. Em doses moderadas, os fármacos
atuam como sedativo, atenuando a ansiedade e causando sonolência. Mas,
quando o médico aumenta a dosagem dessas substâncias, elas deixam o
paciente completamente anestesiado e sem reflexos. Em concentrações
exageradas, contudo, a anestesia pode levar à morte.Isso porque as
drogas utilizadas também deprimem as áreas cerebrais que controlam a
respiração e a pressão sanguínea. Quando esta zera, por exemplo, ocorre o
choque anafilático: o sangue não circula e, daí, as células ficam sem
oxigênio — as do sistema nervoso são as primeiras a se danificarem com
isso. Quanto à respiração, os médicos diminuem os riscos com um tubo,
introduzido na traqueia do paciente, para conduzir o oxigênio. Esse,
aliás, é um recurso indispensável, quando não há certeza de que a pessoa
passou as quatro horas anteriores a cirurgia em jejum absoluto. “As
drogas da anestesia podem provocar crises de vômito” justifica o
professor Fernando Bueno Pereira Leitão, da USP. “O paciente pode se
engasgar e ficar com as vias respiratórias superiores obstruídas. Mas o
tubo, direto na traqueia, garante um desvio dessas obstruções”, diz ele.
O
desafio dos pesquisadores na área da Anestesiologia é criar uma droga
capaz de substituir a mistura de todas as outras. Infelizmente, as
primeiras tentativas, nesse sentido, ainda estão longe do ideal. É o
caso do chamado etomidato. Em tese, a droga deveria, sozinha, provocar
sono, analgesia e relaxamento muscular. Mas o paciente faz movimentos
com os braços, que confundem os médicos, sem saber se o gesto é uma
reação à dor. O mais promissor dos novos super anestésicos é o propofol,
criado há quase dez anos. Há cinco anos, ele começou a ser aplicado em
alguns hospitais brasileiros, misturado com outras substâncias. Isso
porque, por enquanto, ele só tem um inconveniente: o preço, dez vezes
mais caro do que o de outras substâncias anestésicas, que dói no bolso
do paciente.
Boxes da reportagem
Sem padecer no paraíso
Os
calvinistas ingleses quase tiveram uma síncope, quando o obstetra
escocês Sir James Simpson (1811-1870) defendeu, no século passado, a
aplicação da anestesia para aliviar as dores do parto. Afinal, segundo a
Bíblia, como castigo por ter comido a maçã proibida, Eva e suas
descendentes teriam de dar à luz em meio ao sofrimento. E, hoje se sabe,
a dor do parto pode ser tão violenta quanto a de uma amputação a sangue
frio. Ao menos, é o que afirmam os especialistas, que atualmente
empregam várias alternativas para tornar esse momento mais suportável,
reduzindo o estresse da mãe e do filho.De acordo com o médico José
Carlos Almeida Carvalho, que supervisiona o setor de Anestesia
Obstétrica do Hospital das Clínicas, em São Paulo, o ideal é atenuar a
dor sem inibir os movimentos da parturiente. “Isso é possível graças à
chamada peridural contínua”, diz ele. “A gente faz uma punção entre a
quarta e a quinta vértebras lombares, para colocar um cateter, por onde
passa o anestésico. A substância vai sendo despejada aos poucos, em
maior ou menor dosagem, conforme a necessidade em cada momento do
trabalho de parto.”Já nos casos de cesárea, os médicos costumam apelar
para a anestesia raquiana ou para a peridural. Nos dois tipos, as
substâncias usadas são as mesmas; o que muda é o lugar da aplicação. Na
raquiana, o anestésico é lançado no líquor, existente entre as duas
membranas — pia-máter e dura-máter — que envolvem a medula espinhal. Na
peridural, por sua vez, o anestésico é injetado fora desse espaço, ao
redor da dura-máter. Daí que esse tipo de anestesia demora mais para
fazer efeito e é mais suave — a mulher pode sentir o obstetra puxando o
bebê, por exemplo. A raquiana, extremamente potente por ser aplicada em
um ponto mais profundo, chega a abolir os movimentos da mãe e, ainda,
causa dor de cabeça no pós-operatório — um efeito colateral da picada em
uma região muito sensível, que os especialistas tentam minimizar com agulhas cada vez mais finas.
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