As relações sino-africanas é um assunto que tem interessado o mundo acadêmico e a política internacional. Durante as lutas de libertação nacional, a China apoiou o continente africano, ganhando assim a confiança do mesmo. A expansão chinesa para a África é de extrema importância para o continente, que vê nesse país um aliado que não impõem condições especiais para a realização de investimentos e apoio político.
Nos anos 90, Pequim apostou na diplomacia Sul-Sul: passou a investir mais no continente africano, sem imposição político-militar, alavancando projetos nacionais de desenvolvimento. Mas isso despertou a soberba das potências ocidentais…
Publicado 13/01/2021 às 16:11 - Atualizado 13/01/2021 às 17:28
Kiir Mayardit, presidente do Sudão do Sul, cumprimenta o presidente chinês, Xi Jinping. Imagem: EPA/EFE |
Texto do cientista político e geógrafo brasileiro Diego Pautasso, que estuda o país asiático há 15 anos.
A densificação das relações sino-africanas remonta ao quadro de forças emergido no Pós Guerra Fria. A China buscava evitar o isolamento internacional após os eventos da Praça da Paz Celestial (1989) e o sequencial colapso do campo socialista. Assim, mobilizou esforços para garantir fontes de recursos (hidrocarbonetos, alimentos e matérias-primas) e a paralela abertura de novos mercados, capazes de contribuir com seu acelerado processo de modernização. O panorama de marginalização do continente africano no ciclo de globalização neoliberal foi percebido pela China como oportunidade, e permitiu a conformação daquilo que os chineses intitularam de diplomacia zhoubian (periférica).
Desde então, são ascendentes as relações entre a China e os países do continente africano, como bem evidenciam os números. Se em 1996 o fluxo comercial era de US$ 4 bilhões, em 2000 já chegava em US$ 10 bilhões, e mais contemporaneamente, em 2018, em quase US$ 185 bilhões – bem acima dos US$ 61,8 bilhões do fluxo comercial do continente com os Estados Unidos da América (EUA) no mesmo ano. Nesse mesmo sentido, os investimentos externos diretos (IED) chineses na África vêm aumentando constantemente. Entre 2003 e 2018, o número passou de US$ 75 milhões para US$ 5,4 bilhões – ultrapassando o montante dos EUA desde 2014, já que estes têm diminuído seus investimentos na África desde 2010.
Ressalte-se que a China tem instituído Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) no continente africano, impulsionando a geração de empregos, a industrialização e a consequente redução da pobreza em muitos de seus países. Entre 2003 e 2015, a ajuda ao desenvolvimento prestada pela China ao continente africano aumentou constantemente, passando de US$ 631 milhões em 2003 para quase US$ 3,3 bilhões em 2018.
Ainda mais importante, a cooperação multilateral se multiplicou e se institucionalizou. Seu mais relevante mecanismo é o Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), criado em 2000, que realiza Conferências Ministeriais a cada três anos, sediadas de forma alternada entre a China e os países africanos, elaborando complexos Planos de Ações. Além disso, com a cooperação China-África em constante expansão e aprofundamento, vários fóruns foram estabelecidos no âmbito do próprio FOCAC, tais como o Fórum do Povo China-África, o Fórum de Jovens Líderes China-África, o Fórum Ministerial de Cooperação em Saúde China-África, o Fórum de Cooperação Mídia China-África, a Conferência de Desenvolvimento e Redução da Pobreza China-África, o FOCAC-Fórum Jurídico, o Fórum sobre a China Cooperação entre governos locais, entre outros. As relações da China com a União Africana ou mesmo o papel da África do Sul no BRICS intensificam ainda mais estas interações.
Traçados esses parâmetros empíricos, é possível refletirmos sobre as abordagens ocidentalistas voltadas a configurar a presença da China na África como imperialista ou neocolonial. E nisso reside o entrelaçamento entre a má-fé patrocinada pelo centro do sistema com certas tendências etnocêntricas e até mesmo profundas incompreensões teóricas acerca dessas dinâmicas. Por um lado, atribuir perfil neocolonial à atuação chinesa na África significa assumir o desconhecimento acerca da história do imperialismo do século XIX e mesmo das práticas atuais das grandes potências norte-atlânticas, notadamente dos Estados Unidos da América, pautadas nas mais diversas ingerências externas diretas e indiretas em diversas regiões do globo.
Por outro lado, é preciso considerar que, apesar das assimetrias, há importantes pontos de convergência entre os países emergentes e os países periféricos, em razão das disputas pela distribuição de poder no mundo. Ou seja, o relacionamento Sul-Sul se torna uma alternativa crucial para resistir aos constrangimentos que os países periféricos e emergentes estão submetidos ao adotarem seus projetos de desenvolvimento nacionais não alinhados aos interesses norte-atlânticos. Assim, não raramente estes mobilizam suas estruturas de poder e seus princípios legitimadores, como a defesa da “democracia”, dos “direitos humanos” e da “liberdade” para impor seus interesses.
Em outras palavras, o imperialismo não pode ser reduzido ao processo de exportação de capitais, e de fato nunca foi, afinal a soberania política, a autodeterminação e o desenvolvimento nacionais conformam, conjuntamente, uma complexidade infinita de variáveis. Se as relações interestatais estão impregnadas de interesses nacionais e corporativos, de conflitos e assimetrias, é preciso compreender os padrões de relacionamento levando em conta a correlação de forças e as alternativas políticas em questão. Não se pode, pois, negligenciar que as relações sino-africanas não têm sido baseadas em qualquer imposição de modelos político-institucionais e de ajustes macroeconômicos; não recorrem às práticas de desestabilização e ingerências políticas e militares; têm proporcionado vantajosas condições de financiamento e disposição para a cooperação tecnológica; e ainda possuem uma agenda diplomática em muitos aspectos convergentes no que se refere à reorganização da governança do sistema internacional.
Aliás, segundo Deborah Bräutigam, uma das maiores especialistas nas relações entre China e África, os recorrentes argumentos anti-chineses não se sustentam quando confrontados com a realidade: cerca de 75% dos trabalhadores em obras chinesas no continente são africanos; longe de atenderem a interesses especulativos, 70% dos empréstimos servem às obras de infraestrutura energética e de transporte, com taxas de juros baixas e longos períodos de pagamento; e, apesar de setores midiáticos anunciarem com tom catastrofista que empresas chinesas já teriam adquirido “6 milhões de hectares” de terras africanas (que na verdade não ultrapassam a marca de 1% de todas as terras agricultáveis da África), sequer o dado é verdadeiro, afinal pesquisas indicam a compra de apenas 240.000 hectares (ou seja, apenas 4% da porção relatada).
Isto não quer dizer que a presença da China e dos demais países emergentes na África esteja isenta de problemas e contradições. Ou seja, de modo algum se deve negligenciar as agendas conflitantes das distintas nações, os conflitos sociais intra e interestatais ou os embates entre os interesses governamentais e de certas corporações. No entanto, o dado central dessa questão reside no fato de que a presença dos emergentes – especialmente da China, mas também do Brasil, Índia e demais – têm ocorrido em prejuízo das grandes potências norte-atlânticas, sobretudo das antigas detentoras de vastos impérios coloniais (França, Reino Unido, Bélgica e Portugal), dos “desinteressados” e “altruístas” países nórdicos e da grande superpotência mundial, os EUA. A mesma carga dos frágeis argumentos que ataca as relações dos países africanos com a China também já foi utilizada quando do crescente adensamento dos vínculos entre o Brasil e os países africanos e até mesmo com seus vizinhos sul-americanos. Como exemplo, foi amplamente estimulada por veículos midiáticos franceses e ativistas políticos desorientados para obstruir relevantes iniciativas como a cooperação trilateral Brasil-Japão-Moçambique para a implementação do ProSavana em Moçambique, que teria crucial participação da Embrapa.
Assim, distintamente do que vem sendo apontado pelos formuladores do “neocolonialismo chinês” (ou até mesmo do “subimperialismo brasileiro”), essas relações têm se constituído, de forma geral, num flagrante elemento de promoção da estabilidade e desenvolvimento – e endossadas sem mecanismos de imposição político-militar ou técnicas de regime change. Isso ocorre porque se apresentam como alternativas para os países africanos na busca por melhores condições de crédito, pela atração de investimentos, pela obtenção de cooperação técnica, pelo fortalecimento de suas soberanias e, consequentemente, por maior convergência diplomática nas articulações em prol das reformas dos principais organismos multilaterais globais. Longe de representarem anseios imperialistas ou predatórios, atuam no sentido contrário, e exatamente por isso se tornam alvo predileto daqueles que, por detrás da retórica da liberdade e de um denuncismo de frágil sustentação empírica, visam sustentar as apodrecidas estruturas de dominação que lhes garantem um lugar ao sol.
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