Álvaro Vasconcelos, especialista em geopolítica, analisa o cenário que saiu das eleições gerais do Brasil e é perentório ao afirmar que Fernando Haddad e Ciro Gomes devem juntar forças para a segunda volta, com a necessidade de conseguirem, ainda, captar o eleitorado do Centro: "É absolutamente essencial quase que uma fusão entre Haddad e Ciro Gomes", vaticina.
© Fábio Poço / Global Imagens
A primeira volta das
eleições gerais no Brasil colocou Jair Bolsonaro muito bem posicionado
para se tornar no próximo presidente brasileiro. Com um discurso
extremista, pautado por declarações racistas, machistas e homofóbicas, o
candidato da extrema-direita conseguiu aproveitar a rejeição de grande
parte da classe média brasileira ao Partido dos Trabalhadores (PT),
roubando votos, particularmente, ao centro-direita do Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB) e do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB).
Esta é a análise que o ex-diretor do Instituto da União
Europeia para os Estudos de Segurança Álvaro Vasconcelos faz numa
entrevista por telefone ao Notícias ao Minuto, um dia depois de um domingo em que Jair Bolsonaro ficou a um passo de vencer o escrutínio logo à primeira volta.
Para
o especialista em assuntos internacionais, Fernando Haddad, que irá
defrontar Bolsonaro na segunda volta, deve unir esforços com Ciro Gomes
(terceiro classificado com 12% dos votos), de forma a criar uma
"dinâmica forte no campo da Esquerda brasileira" que também permita o
diálogo "com os setores do PSBD mais
sociais-democratas que não querem,
de forma alguma, apoiar Bolsonaro".
Álvaro Vasconcelos considera
que uma vitória de Bolsonaro no próximo dia 28 de outubro "seria uma
tragédia para o Brasil", mas não só, uma vez que, neste momento,
assistimos a "um refluxo da democracia no mundo".
A
combinação da corrupção com a grave crise económica criou um um enorme
descontentamento na classe média brasileira, que ao mesmo tempo abriu
espaço para a destruição dos partidos do Centro e para a subida da
extrema-direita
Como é que chegámos a esta situação, em
que um candidato de extrema-direita esteve perto de vencer a primeira
volta das eleições gerais no Brasil?
Chegámos devido a um
conjunto de circunstâncias. Antes de tudo, por uma crise económica
profunda que atravessa o Brasil, o descontentamento da classe média com o
impacto dessa crise, e por outro lado, os numerosos casos de corrupção
que atingiram todos os partidos que governaram o Brasil desde o fim da
ditadura, ou seja, o PT, que esteve mais tempo no poder, o PSDB e o MDB.
A combinação da corrupção com a grave crise económica criou um enorme
descontentamento na classe média brasileira, que ao mesmo tempo abriu
espaço para a destruição dos partidos do Centro e para a subida da
extrema-direita, com Bolsonaro.
Esta situação é fruto da
divisão, na sociedade brasileira, entre o apoio ao PT e o ódio ao PT,
assim como a uma deriva conservadora e autoritária?
É
evidente que existe uma polarização na sociedade brasileira entre o PT -
e os partidos próximos, como o PSOL ou, eventualmente, o PDT de Ciro
Gomes - e a extrema-direita de Bolsonaro. Agora, podemos constatar
nestas eleições que quem foi profundamente atingido pela subida de
Bolsonaro não foi o PT, mas sim o PSDB e o PMDB. O PSDB já governou o
Brasil, teve sempre candidatos na segunda volta das presidenciais, e
desta vez Gerald Alckmin teve apenas 5% dos votos, enquanto o candidato
do PMDB, Henrique Meirelles, teve pouco mais de 1%. Portanto, o setor
mais atingido foi o centro-direita. O PT, de certa forma, até conseguiu
sobreviver, apesar do ódio que existe ao partido.
Durante
várias semanas, nas intenções de voto, Bolsonaro esteve sempre entre os
20 e os 30%. De repente, subiu exponencialmente e isso traduziu-se
nesta votação. Isto significa que ele roubou eleitorado a Lula da Silva?
É
possível que uma parte do eleitorado das classes mais pobres do Brasil,
influenciado pelos setores evangélicos, tenha mudado o seu voto de Lula
para Bolsonaro. É possível, certamente que aconteceu em alguns Estados, mas não me parece ser o essencial do voto de Bolsonaro. O
essencial do voto de Bolsonaro vem dos eleitores tradicionais do PMBD e
do PSDB. Nas últimas eleições [2014], o candidato do PSDB, Aécio Neves,
esteve quase a vencer Dilma Rousseff. Agora, Geraldo Alckmin teve cerca
de 5%.
Na
segunda volta, Fernando Haddad deveria assumir-se de uma forma muito
mais pessoal, no sentido de mais autonomia em relação a Lula, e de
apoderar mais a sua imagem
Se fosse candidato contra Bolsonaro, Lula da Silva teria hipóteses de ganhar?
As
sondagens mostravam isso. Enquanto foi candidato, Lula ia muito à
frente, com uma percentagem muito maior do que a teve Fernando Haddad.
Mas não sabemos o que é que se passaria na campanha, como também não
sabemos o impacto que o grau de rejeição de Lula teria, numa segunda
volta, nas alianças necessárias para vencer as eleições. Tudo isto são
incógnitas. Mas não há dúvida de que a relação de Lula com o eleitorado
pobre do Brasil e com as classes mais desfavorecidas é fortíssimo, como
se vê com a votação que o PT teve nos Estados do Nordeste. Foi aí que o
Haddad foi buscar os votos necessários para chegar à segunda volta. E o
PT ainda é o partido com mais deputados na Câmara de Deputados. Resistiu
no Nordeste porque há memória das políticas sociais de Lula.
Após
a noite eleitoral, Fernando Haddad foi visitar Lula da Silva à prisão. O
que acha que o ex-presidente disse ao candidato do PT?
Certamente
que Lula lhe deu conselhos eleitorais, certamente que analisaram as
possibilidades da segunda volta, a forma de conquistar apoio no Centro.
Lula sempre foi um mestre na criação de coligações. Tudo isso foi
discutido. O que não sabemos é o grau de referência a Lula que Haddad
continuará a ter nesta segunda volta das eleições presidenciais. Se
Haddad se vai distanciar um pouco de Lula, de forma a poder conquistar
eleitorado que é muito anti-PT, ou se continuará com a bandeira de Lula
com a convicção de que esta lhe pode dar a vitória. Esta é a grande
discussão, hoje, no campo dos opositores de Bolsonaro que estão
dispostos a apoiar Haddad: o grau de relação com Lula.
Desses dois cenários, qual é o que poderá beneficiar mais Fernando Haddad?
Acho
que, na segunda volta, Fernando Haddad deveria assumir-se de uma forma
muito mais pessoal, no sentido de mais autonomia em relação a Lula, e de
apoderar mais a sua imagem. Se é verdade que tem alguma dificuldade com
os setores mais desfavorecidos do Brasil, Haddad tem uma aproximação
maior à classe média. Lembremos que ele foi prefeito de São Paulo e que
foi ministro da educação, com um trabalho notável. É verdade que com
grande apoio em Lula, mas Haddad foi executante e criador de muitas
políticas na educação que tiraram muita gente do analfabetismo e da
ignorância, e que deram possibilidade de crescimento educativo a uma
parte da população brasileira que nunca tinha dito acesso a educação
média ou superior. Haddad tem um currículo importante e é preciso, ao
mesmo tempo, combater um sectarismo no PT existente em relação aos
outros partidos, essenciais para derrotar Bolsonaro. Haddad terá boas
condições para o fazer, porque nunca foi do setor sectário do PT.
É
absolutamente essencial, mais do que uma aliança, quase que uma fusão
das duas campanhas, com Haddad, desde já, a indicar o papel
preponderante de Ciro Gomes no seu futuro governo
Acha que
Haddad receberá o apoio dos outros candidatos? Ciro Gomes deu a
entender que sim, mas Marina Silva e Geraldo Alckmin ainda não.
O
apoio de Ciro Gomes é mais do que provável e será essencial. Com os
votos somados (42%), Haddad e Ciro Gomes aproximam-se do resultado de
Bolsonaro (46%). É absolutamente essencial, mais do que uma aliança,
quase que uma fusão das duas campanhas, com Haddad, desde já, a indicar o
papel preponderante de Ciro Gomes no seu futuro governo, caso vença as
eleições. Depois, isso criará uma dinâmica forte no campo da Esquerda
brasileira, e irá permitir também o diálogo com Fernando Henrique
Cardoso e com os setores do PSBD mais sociais-democratas que não querem,
de forma alguma, apoiar Bolsonaro. Resta saber o que Fernando Henrique
Cardoso irá exigir em troca do apoio.
Mesmo com esse
apoio, poderá não ser suficiente para Haddad, porque Bolsonaro está nos
46% e poderá conseguir roubar, por exemplo, aqueles cerca de 5% de
Alckmin.
O eleitorado de Alckmin que iria votar
em Bolsonaro já votou. Os que ficaram com Alckmin não são bolsonaristas,
estão ali, podem ser conquistados por Haddad e Ciro Gomes. Agora, a
campanha deveria ser claramente Haddad/Ciro Gomes. É mais natural este
eleitorado ir para Haddad e Ciro Gomes e não para Bolsonaro, isto se
Haddad assumir os erros do PT, criticar toda a forma de sectarismo e
apresentar, desde já, uma proposta de governo, eventualmente um ministro
das finanças, que dê confiança a esse setor do PSDB.
Estamos num período muito perigoso para a ordem internacional e para a democracia
Haverá tempo, em apenas duas semanas, para que essa catarse que o PT precisa de fazer consiga convencer os eleitores?
Não
podem ser só palavras. É preciso indicar nomes fortes que dão
garantias. Não estamos a pensar que o Bolsonaro vá passar de 46% para
30%. Estamos a pensar que ele não vai conquistar os 4% que faltam, e que
pode ganhar ou perder 1% ou 2%. Aquilo vai ser no fio da navalha, por
isso é preciso convencer o setor do eleitorado mais central que resistiu
a Bolsonaro. É muito pouco eleitorado, não é assim tanta gente que é
preciso convencer.
Num cenário em que Bolsonaro vence as
eleições, quais podem ser as consequências da vitória de um candidato de
extrema-direita, racista, homofóbico e misógino?
Seria
uma tragédia para o Brasil. Haveria uma grande resistência da sociedade
civil brasileira e, como consequência dessa resistência, é possível que
aumentasse o lado violento de Bolsonaro da opressão da sociedade civil.
Haveria manifestações de grupos sociais e poderia haver confrontos com a
polícia. A possibilidade de um cenário muito negativo, com
consequências muito graves do ponto de vista das liberdades públicas,
existe, claramente, no Brasil.
Estamos a assistir a um
crescimento a nível mundial da extrema-direita e um consequente período
crítica para as democracias liberais?
Não há dúvida de
que há, neste momento, um refluxo da democracia no mundo. Temos visto em
democracias consolidadas a ascensão de líderes autoritários,
identitários e xenófobos, assim como de partidos que, apesar não estarem
no poder, estão a crescer em muitos países. Isto é particularmente
grave na Europa, porque esse crescimento põe em causa toda a construção
europeia do pós-Guerra, mas também nos Estados Unidos, como vimos com a
vitória de Trump, e em velhas democracias com a Índia. Estamos num
período muito perigoso para a ordem internacional e para a democracia.
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